O legado deixado pela Revolução de 32
Publicado Estadão com Edison Veiga
quarta-feira 09/07/14
No aniversário do 9 de Julho, historiadores destacam que movimento foi pioneiro na opção pela industrialização e na emancipação feminina
A criação da Universidade de São Paulo (USP), a opção pela industrialização, o aprendizado da mobilização popular e até a emancipação feminina. Esses foram os maiores legados indiretos citados por historiadores sobre o movimento constitucionalista de 1932, cujo aniversário do primeiro dos 87 dias de combate celebra-se hoje, feriado de 9 de Julho, mais importante data cívica paulista.
O Estado foi derrotado nas trincheiras – com 634 constitucionalistas mortos, conforme atesta o historiador Marco Antônio Villa, em seu livro 1932: Imagens de uma Revolução -, mas a democracia venceu. “Entrego o governo de São Paulo aos revolucionários de 1932”, anunciou o presidente Getúlio Vargas no dia 16 de agosto, ao nomear interventor o civil e paulista Armando de Salles Oliveira, depois eleito governador pela Assembleia.
Julio de Mesquita. As intervenções na política paulista, aliás, motivaram o conflito. O principal líder civil do movimento foi o jornalista Julio de Mesquita Filho (1892-1969), então diretor do jornal O Estado de S. Paulo e principal articulador da Frente Única Paulista. Essa liderança ficou clara em 25 de janeiro de 1932 – cinco meses antes da eclosão do conflito. Na ocasião, mais de 100 mil pessoas marcharam da Praça da Sé à sede do Estado, então na Rua Boa Vista, para ouvir a saudação de Mesquita Filho, que discursou. “Anulada a autonomia de São Paulo, o Brasil se transformou num vasto deserto de homens e de ideias”, disse, da sacada da redação.
Foi essa pressão paulista que deixou pavimentado o caminho para a Constituição de 1934, como pondera o jornalista e escritor Lira Neto, autor da trilogia Getúlio. Mas os estudiosos vão além disso, ao apontar o legado do movimento. “Não fosse a Revolução, a Universidade de São Paulo (USP) não teria sido criada”, diz o sociólogo e escritor José de Souza Martins. Quando Salles Oliveira assumiu o governo paulista, ele convidou Julio de Mesquita Filho para coordenar a criação da universidade – inaugurada em 1934. “Foi uma reação de São Paulo, derrotado nas armas, investir na educação e na cultura. É a maneira de ‘derrotar o inimigo’ pelo saber.”
Outra consequência foi a opção pela industrialização, começando por São Paulo. “Vargas não venceu sozinho. Na verdade, ele venceu perdendo”, diz Martins. “Na Revolução de 1932, ele derrotou gente como (engenheiro, político e industrial paulista) Roberto Simonsen. Mas, em acordo não escrito com os derrotados, Simonsen se transformou no principal assessor informal do governo federal para a industrialização.”
O escritor Lira Neto acredita que o movimento serviu também para que o povo aprendesse a se unir por uma causa. “Sem entrar no mérito da questão em si, acredito que a mobilização popular foi um grande legado”, comenta. “Pois mesmo o movimento tendo partido da elite, ele se espraiou para o restante da sociedade. Isso contagiou a população como um todo. Todo mundo se uniu em torno da mesma bandeira, a paulista.”
Estudioso do movimento revolucionário de 1932, o empresário Raul Corrêa da Silva concorda. “Como o Brasil não teve uma experiência de guerra em sua história, tivemos proclamações da Independência e da República sem derramamento de sangue, a Revolução de 1932 acabou se tornando um grande marco para mostrar que com o povo não se brinca.”
Mulher. O estudioso lembra a mudança de postura da mulher paulista no período, em que a sociedade não costumava ver com bons olhos quando senhoras deixavam os afazeres domésticos para se embrenhar em algum trabalho. “A mulher foi constitucionalista. Se antes ela só ficava em casa, durante a Revolução foi fazer uniformes, foi para as fábricas, foi produzir material para as batalhas. Houve uma mudança de postura”, defende ele. “Mas o grande legado foi a democracia. E a lição: se for necessário que São Paulo vá às armas de novo, São Paulo irá”, afirma. “Há uma frase da época que diz: ‘São Paulo é a favor do Brasil quando precisa e contra o Brasil se for preciso’.”
Reportagem publicada originalmente na edição impressa do Estadão, dia 9 de julho de 2014
A beleza da Revolução Constitucionalista de 1932
✽ANÁLISE: Antonio Penteado Mendonça
A vantagem de comentar um fato mais de 80 anos depois de ele ter acontecido é que temos acesso a informações mais amplas, abrangendo todos os lados, o que é completamente diferente de estar no olho do furacão, no calor da hora, tomando decisões que podem ter consequências opostas às esperadas.
Com a Revolução de 1932 não é diferente. Uma coisa era estar lá, no momento em que a população do Estado de São Paulo se amotinava, atiçada por ameaças que lhe pareciam reais, enfrentando as dificuldades de relacionamento com o governo federal, a falta de certeza em relação a Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a falta de armamentos modernos, a atitude do general Bertoldo Klinger e os compromissos que iniciariam o movimento armado para depor o presidente Getúlio Vargas.
Outra, muito mais cômoda, é 82 anos depois analisar as razões que impediram São Paulo de se aproximar da vitória, ainda que num primeiro momento tendo chances concretas de depor o ditador.
A Revolução de 1930 costuma ser muito mal explicada nas salas de aula brasileiras. Ainda que tenha sido um movimento com consequências dramáticas para a história nacional, ela é vendida como a mobilização do País para derrubar as elites paulistas e mineiras, que dominavam o governo federal, e para introduzir mudanças na forma da administração do País. Não é verdade.
A começar pelo fato de que Getúlio Vargas estava longe de ser o comandante corajoso e disposto a afrontar todos os riscos para tomar o poder – o que o teria levado a enfrentar as dificuldades e abrir caminho a baioneta, do Rio Grande ao Rio de Janeiro. A Revolução de 1930 chega até nós como uma revanche contra paulistas e mineiros, o que tem sido sistematicamente desmentido por estudos modernos a respeito da história do Brasil naquele período.
Ninguém discute que, se as tropas da Força Pública Paulista quisessem impedir, a caravana transportando Getúlio Vargas não teria cruzado o Estado de São Paulo. Elas eram mais bem equipadas que as demais forças brasileiras, incluído o Exército. Se Getúlio atravessou o Estado e, mais do que isso, foi recebido por uma multidão que o ovacionou ao longo do trajeto, foi porque os paulistas também desejavam mudanças na forma da administração da Nação.
Em vez de respeitar o apoio paulista e permitir que a população fosse governada por homens da terra, Getúlio Vargas, assim que se viu vitorioso, entregou São Paulo aos “tenentes”, permitindo que a Unidade mais desenvolvida da Federação servisse de campo de provas para experiências político-ideológicas de um grupo de pessoas que desejavam um País bastante diferente da realidade já alcançada pelo Estado.
A Revolução de 1932 foi a consequência lógica do embate entre as duas visões completamente antagônicas de modo de vida e sociedade. Ela teve uma liderança civil, composta pela união quase impensável entre o Partido Republicano Paulista e o Partido Democrático, mas o que a fez irreversível foi a ameaça contra os avanços sociais e econômicos do Estado, tão forte que levou a população a se mobilizar em defesa de seus valores. Daí em diante, a luta tornou-se inevitável.
Não cabe aqui analisar a série de equívocos praticados pelos paulistas ao longo do percurso até a deposição das armas, no início de outubro de 1932. Mas é importante salientar alguns fatos que mostram a verdadeira beleza do movimento, no qual perto de mil pessoas deram suas vidas – voluntários e soldados sem qualquer treinamento, lutando em uma guerra mal comandada, mal planejada, com ações da mais sórdida traição, praticadas por comandantes despreparados, covardes, descomprometidos com a causa de São Paulo ou de pleno acordo com o pensamento do governo federal.
Para uma melhor compreensão do quadro, basta ler a série de livros publicados por ex-combatentes, narrando as ações no seu setor durante a luta. Para não alongar, vale citar Palmares pelo Avesso, de Paulo Duarte, e Batalhão 14 de Julho, de Augusto de Souza Queiroz.
Em1932 mais de 70% da população brasileira era analfabeta. Se nos dias de hoje, com índices melhores do que esse, com certeza apenas uma parcela reduzida sabe o que é “Constituição”, imagine naqueles dias.
Dizer que o paulista largou tudo para se alistar como voluntário para lutar pela “Constitucionalização do País” é ir além da real capacidade intelectual do cidadão médio do Estado de São Paulo à época.
Humilhado pelo governo federal que tratava o Estado como “terra conquistada”, o paulista desejava recuperar seu orgulho e sua autonomia, para manter o ritmo de desenvolvimento e a qualidade de vida, alcançada pelas mudanças econômicas que modernizavam a sociedade, como consequência da soma da vontade de vencer dos imigrantes com a força empreendedora da população do Estado.
Para ele a “Constituição”, pregada pela propaganda em 1932, era isso. Poder prosseguir evoluindo, criando riquezas, melhorando as condições de vida e bem-estar social, de cabeça erguida e sem dever nada a ninguém.
Por isso valia a pena morrer. E o cidadão comum não hesitou. Foi ser soldado, sem treinamento, mal equipado e mal comandado. Oque estava em jogo era o orgulho do seu modo de vida. Se ele se chamava “Constituição”, muito bem, valia a pena morrer por ela. Operários, comerciários, comerciantes, bancários, banqueiros, industriais, fazendeiros, sitiantes, trabalhadores rurais, profissionais liberais, estudantes, mulheres, meninos, brancos, índios, negros, mulatos, mamelucos, caiçaras, caipiras, gente da cidade, todos se alistaram, voluntários, dividindo o frio das trincheiras, o chão das fábricas, as enfermarias dos hospitais de sangue, irmanados na certeza de que o que haviam conseguido com seu trabalho era bom e era deles e, por isso, ninguém tinha o direito de interferir no progresso de São Paulo e na certeza de um futuro melhor.
Futuro que se consolidou em 1934, não com a Constituição, mas com a criação da
Universidade de São Paulo.
PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E COLUNISTA DO ESTADO E DA RÁDIO ESTADÃO
Reportagem publicada originalmente na edição impressa do Estadão, dia 9 de julho de 2014